Josef de Veuster-Wouters nasceu em 3 de janeiro de 1840, na pequena vila de Tremeloo, na Bélgica. Filho de agricultores devotos, ele cresceu em um lar católico, no seio de uma família numerosa e profundamente religiosa. Era o mais novo de sete irmãos, dois dos quais ingressaram na vida consagrada. A vocação, portanto, estava inscrita não apenas em sua alma, mas no ambiente familiar que o formou. Desde muito jovem, Josef mostrou-se inclinado à vida de oração e ao desejo de servir aos outros, sobretudo os mais pobres. Seu caminho, porém, não seria o que seu pai esperava.
O Chamado Mais Forte que a Tradição
Embora seu pai desejasse que ele herdasse e conduzisse os negócios da família, Josef sentia dentro de si um chamado mais profundo: tornar-se missionário. Inspirado pela vida de São Francisco Xavier, o grande apóstolo do Oriente, decidiu ingressar na Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria — a mesma de seu irmão. Ao professar os votos religiosos, assumiu o nome de irmão Damião, em homenagem ao mártir cristão do século III.
Aos 21 anos, já em Paris, enquanto finalizava seus estudos teológicos, Damião participou de uma conferência de um bispo vindo do Havaí. O prelado falava das dificuldades espirituais e sociais que o arquipélago enfrentava, especialmente com a propagação de doenças entre os nativos. Movido por esse testemunho e pelo ardente desejo de evangelizar, Damião se ofereceu como voluntário para a missão, mesmo antes de ser ordenado sacerdote.
Quando uma epidemia de febre tifoide acometeu o seminário e impediu que seu irmão, o candidato original à missão, pudesse partir, Damião insistiu com o superior de sua congregação para ser enviado em seu lugar. O pedido foi aceito, e em 1864, ele foi ordenado sacerdote e partiu para o Havaí.
A Chegada ao Havaí: Um Apostolado de Esperança
A viagem foi longa e árdua, durando quase cinco meses. Já naquele momento, o jovem padre teve uma amostra do que seria a sua vida: marcada por sacrifícios, renúncia e entrega total. Nos primeiros anos, desempenhou suas funções sacerdotais nas ilhas principais, convivendo com os nativos e aprendendo seus costumes e línguas. Seu trabalho foi frutífero: organizou comunidades, celebrou os sacramentos e se fez presença consoladora entre os doentes e pobres.
Contudo, um novo desafio se apresentaria: a epidemia de lepra (hanseníase), que assolava a população nativa do arquipélago. A doença, altamente estigmatizada, era considerada incurável e motivo de grande temor. A origem da propagação parece estar ligada à chegada de imigrantes asiáticos, especialmente chineses, portadores da bactéria Mycobacterium leprae. Os polinésios, sem imunidade natural, foram dizimados em número alarmante.
A Ilha de Molokai: Um Calvário Escolhido por Amor
Em 1866, o governo do Reino do Havaí, temendo o avanço da doença, adotou uma política drástica: isolar todos os leprosos na ilha de Molokai, em um local conhecido como Kalaupapa. Os doentes eram arrancados de suas famílias e enviados à força para aquele território cercado por penhascos e acessível apenas por navio. Em Molokai, não havia hospitais funcionais, nem assistência médica adequada, tampouco presença constante do clero.
Diante da situação, o bispo de Honolulu pediu voluntários entre os sacerdotes. Sabia-se, contudo, que quem aceitasse a missão dificilmente sairia vivo de lá. Mesmo assim, quatro padres se apresentaram. Entre eles, estava Damião, que foi o primeiro a ser enviado.
Um Cenário Infernal: A Luz em Meio às Trevas
O que Damião encontrou em Molokai foi desolador: centenas de leprosos abandonados, vivendo entre cadáveres não enterrados, em estado de degradação física, social e espiritual. A comunidade estava mergulhada em miséria, vícios, violência e desespero.
A primeira ação de Damião foi celebrar a Santa Missa — o centro de sua vida espiritual. Poucos compareceram, mas o gesto marcou o início de sua transformação naquela terra esquecida. Aos poucos, ele foi conquistando a confiança dos doentes, não apenas pela pregação, mas pela presença concreta e incansável. Foi construtor, médico, pedreiro, carpinteiro, professor e, sobretudo, pastor de almas.
Construiu mais de 300 cabanas para os doentes, dois mil caixões para dar dignidade aos mortos, um hospital rudimentar, um canal de irrigação e uma igreja de alvenaria. Mas, mais do que estruturas físicas, Damião restaurou a esperança e a dignidade humana entre os leprosos. Abraçava-os, comia com eles, cuidava de suas feridas, confessava-os e batizava-os.
O Martírio Silencioso
Dez anos após sua chegada a Molokai, Damião percebeu um sinal temido: derramou água fervente no pé e não sentiu dor — um sintoma clássico da lepra. Ao anunciar sua condição aos fiéis, fê-lo com serenidade e fé, afirmando:
“Nossa verdadeira pátria é o Céu, para onde nós, os leprosos, estamos certos de ir muito em breve […]. Lá não haverá mais nem lepra nem feiura, e seremos transfigurados.”
Durante mais cinco anos, permaneceu fiel à sua missão, mesmo debilitado. Faleceu no dia 15 de abril de 1889, com 49 anos, vítima da mesma doença que o levou à ilha — mas também da qual nunca fugiu.
Um Legado Universal
São Damião de Molokai, como ficou conhecido após sua canonização, tornou-se símbolo de caridade radical. Seu testemunho transcende fronteiras religiosas e culturais. Foi admirado por personalidades como Mahatma Gandhi, que afirmou:
“É preciso saber de onde tirou este homem a força para tal heroísmo.”
A resposta a essa pergunta é clara para quem compreende a espiritualidade cristã: a Eucaristia. Era diante do altar que ele buscava forças diárias, como escreveu:
“Sem a presença constante de Nosso Senhor no Santíssimo Sacramento, eu jamais poderia perseverar.”
Foi canonizado pelo Papa Bento XVI em 11 de outubro de 2009, que o descreveu como “servo sofredor, leproso com os leprosos”. Seu exemplo interpela ainda hoje uma Igreja chamada a sair de si mesma para ir ao encontro dos marginalizados e excluídos, os “leprosos” de nosso tempo.
Uma Oração Contemporânea
São Damião de Veuster nos ensina que a verdadeira caridade cristã vai além da filantropia: é uma entrega total, radical e desinteressada. Ele nos convida a sair do conforto e buscar, no serviço aos mais pobres, a face viva de Cristo crucificado.
“São Damião de Molokai, ajudai-me a ser presença amorosa de Cristo no mundo. Inspirai-me a ir ao encontro dos excluídos, a me doar sem medida, a servir sem esperar recompensa. Que eu encontre na Eucaristia a mesma força que vos sustentou. Rogai por nós!”
Referências bibliográficas
- FARROW, Douglas. Saint Damien of Molokai: Apostle of the Exiled. Ignatius Press, 2000.
- CATHOLIC CHURCH. Homilia da Canonização de São Damião de Veuster. Bento XVI, 2009.
- VAN ACKER, Jan de Volder. Father Damien: The Hero of Molokai. St. Augustine’s Press, 2000.
- FAGGIOLI, Massimo. True Reform: Liturgy and Ecclesiology in Sacrosanctum Concilium. Liturgical Press, 2012.