Nascido em Aosta, no coração do antigo Piemonte, no ano de 1033, Santo Anselmo de Cantuária é uma das figuras mais luminosas do pensamento cristão medieval. Filósofo, teólogo e monge beneditino, ele representa uma síntese fascinante entre razão e fé, entre o rigor intelectual e a contemplação espiritual. Sua trajetória não é apenas a de um pensador brilhante, mas também a de um pastor de almas profundamente enraizado na vida da Igreja e em sua missão de conduzir os fiéis à verdade revelada em Jesus Cristo.
As raízes familiares e a juventude inquieta
Filho do conde Gondulfo e de Ermemberga — esta última uma mulher profundamente cristã e educadora de valores —, Anselmo cresceu em uma família nobre, onde o ambiente intelectual e religioso se entrelaçam. Ainda jovem, teve como mestre um clérigo local, mas sua verdadeira formação tomou rumo ao ser acolhido por monges beneditinos, que lhe transmitiram o espírito da Regra de São Bento: ora et labora — oração e trabalho.
Contudo, a relação difícil com o pai o levou a deixar a casa paterna. Com apenas um burrinho e um servo, partiu rumo à França. Este gesto, embora aparentemente impulsivo, foi profundamente simbólico: uma ruptura com as expectativas mundanas e o início de uma peregrinação interior que o levaria a um encontro transformador com Deus.
Em busca da sabedoria e do prazer
Como tantos jovens sedentos de sentido, Anselmo buscou o saber, mas também se entregou aos prazeres efêmeros. Embora ainda cristão por batismo, sua vivência espiritual era superficial. Esse período de sua vida o revela como alguém que, mesmo imerso nas ambiguidades humanas, conservava uma abertura à transcendência.
Foi durante essa busca que chegou ao célebre Mosteiro de Bec, na Normandia, onde conheceu Lanfranc — um renomado mestre e monge beneditino. A amizade com Lanfranc foi um ponto de inflexão: não apenas o introduziu ao rigor dos estudos monásticos, mas despertou nele o desejo profundo de encontrar em Cristo a verdadeira sabedoria.
Conversão e entrada na vida monástica
A convivência com os monges e a escuta atenta das Escrituras foram abrindo seu coração. A experiência de Deus que até então era difusa tornou-se clara e transformadora. Decidiu, então, ingressar na vida religiosa, tornando-se monge beneditino em Bec. Não tardou a destacar-se como um homem de intensa piedade e notável capacidade intelectual.
Com a nomeação de Lanfranc como Arcebispo de Cantuária, Anselmo foi escolhido para sucedê-lo como prior do mosteiro e, mais tarde, como abade. Exerceu essa missão com sabedoria, humildade e firmeza, formando gerações de monges e aprofundando sua obra teológica. Era visto não apenas como líder espiritual, mas como verdadeiro pai e mestre — alguém que educava pela presença, pela palavra e pelo exemplo.
Sua célebre frase — “Não quero compreender para crer, mas crer para compreender” — ilustra bem o coração de sua teologia: uma fé que não se opõe à razão, mas a convoca, a desafia e a eleva.
Arcebispo de Cantuária e defensor da Igreja
Com a morte de Lanfranc, Anselmo foi chamado, por obediência à Igreja, a assumir o Arcebispado de Cantuária. O contexto era de intensas tensões entre o poder real e a autoridade eclesial. Anselmo, como homem de princípios, não hesitou em confrontar o rei quando necessário, defendendo a autonomia da Igreja e a fidelidade à Sé de Pedro.
Esses conflitos o levaram, em alguns momentos, ao exílio, mas nunca à amargura. Sempre buscou o diálogo e o equilíbrio, tornando-se modelo de bispo-pastor, fiel à doutrina, mas também atento às complexidades da vida política e eclesial.
No fim da vida, retornou ao Piemonte, debilitado por uma enfermidade. Faleceu em 21 de abril de 1109, deixando um legado espiritual e intelectual que atravessaria os séculos.
Teólogo e filósofo: o pai da escolástica
Santo Anselmo é frequentemente considerado o “Pai da Escolástica”, antecipando em séculos o espírito que dominaria a teologia medieval. Foi um pensador influenciado por Santo Agostinho, mas com uma originalidade notável. Em sua obra, razão e fé caminham juntas. Para ele, a inteligência humana, quando iluminada pela fé, é capaz de elevar-se até Deus.
Duas de suas obras são especialmente conhecidas:
- Monologion: também chamado de Monólogo, é um exercício de reflexão racional sobre as verdades da fé, buscando compreender a existência de Deus a partir da razão natural.
- Proslogion: ou Colóquio, apresenta o famoso “argumento ontológico” — uma prova da existência de Deus baseada no conceito de que “Deus é aquilo maior do que o qual nada pode ser pensado”. Essa proposta gerou intensos debates filosóficos e influenciou pensadores como Tomás de Aquino, Descartes e até Kant.
A Igreja reconheceu sua grandeza, concedendo-lhe o título de “Doutor Magnífico”, entre os maiores mestres do pensamento cristão.
Espiritualidade e oração
Embora profundo filósofo, Anselmo nunca se afastou da vida espiritual concreta. Suas orações revelam um coração apaixonado por Deus e uma sensibilidade pastoral refinada. Não buscava apenas formular teses, mas conduzir as pessoas à experiência de um Deus vivo.
Como escreveu certa vez:
“Busco o rosto de Deus não como curiosidade intelectual, mas como desejo do coração. A fé me guia para a compreensão, não o contrário.”
Legado e atualidade
Nos tempos atuais, em que muitas vezes se contrapõem ciência e fé, razão e religião, Santo Anselmo continua extremamente atual. Sua vida nos recorda que a fé cristã não é irracional, mas convida à reflexão, à busca, ao aprofundamento. Sua postura diante dos conflitos políticos também inspira uma vivência do Evangelho comprometida com a justiça, mas temperada pela sabedoria.
Ele é, enfim, um farol para todos os que desejam unir vida interior, pensamento crítico e fidelidade à Igreja.
Minha Oração
“Santo Anselmo, mestre da fé que busca compreender, desperta em nós o amor pela verdade do Evangelho e pela sabedoria da Igreja. Que teu exemplo de humildade, coragem e inteligência inspire nossa caminhada. Rogai por nós!”
Referências Bibliográficas
- EVANS, G. R. Anselm of Canterbury: The Major Works. Oxford University Press, 2008.
- SOUTHERN, R. W. Saint Anselm: A Portrait in a Landscape. Cambridge University Press, 1990.
- GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. Loyola, 2009.
- SANTO ANSELMO. Proslogion. Tradução e introdução de Rolf F. Wiggershaus. Paulus, 2000.