Santo do Dia

São Pio V: fé, reforma e resistência em tempos turbulentos

A história da Igreja Católica é marcada por figuras que, em tempos sombrios e conflituosos, não apenas ocuparam o trono de Pedro, mas transformaram-no em plataforma de renovação, resistência e . Um desses nomes é o de Antonio Michele Ghislieri, mais conhecido como São Pio V. Nascido em 17 de janeiro de 1504, na pequena Bosco Marengo, no Piemonte, o futuro Papa tornou-se símbolo da Contra-Reforma, paladino da ortodoxia e organizador da vitória cristã em Lepanto, deixando um legado que ressoa até os dias de hoje.

Da simplicidade piemontesa à cúspide da Cúria

Aos 14 anos, Ghislieri ingressou na Ordem dos Pregadores, os dominicanos, movido por uma piedade austera e um zelo pela verdade que o acompanhariam por toda a vida. Após ser ordenado sacerdote, trilhou uma ascensão eclesiástica que pode parecer vertiginosa aos olhos modernos, mas que refletia seu rigor moral e competência teológica: professor, prior, provincial, inquisidor em Como e Bérgamo, bispo de Sutri e Nepi, cardeal e, finalmente, inquisidor-mor da Igreja.

Aos olhos contemporâneos, o título de “inquisidor” evoca frequentemente imagens distorcidas pela cultura popular e por visões simplistas do passado eclesiástico. Entretanto, no século XVI, ser inquisidor significava ser guardião da ortodoxia em tempos em que a unidade da fé era vista como sustentáculo da ordem civil e religiosa. Para o dominicano Ghislieri, essa missão era inseparável da caridade pastoral.

Eleição ao papado: austeridade em tempos de crise

Eleito Papa em 1566, Pio V assumiu a Cátedra de São Pedro em uma época de múltiplas frentes de crise: a expansão do protestantismo, a corrupção interna da Igreja, os desafios políticos das monarquias católicas e a ameaça muçulmana vinda do Império Otomano. Contra esse pano de fundo, seu pontificado foi guiado pela coerência entre fé, liturgia e justiça.

Logo em seus primeiros atos, Pio V empenhou-se em aplicar as determinações do Concílio de Trento (1545–1563), instrumento maior da reforma católica. Cortou gastos supérfluos da corte papal, combateu com rigor o nepotismo — negando cargos e benefícios até a seus próprios parentes — e exigiu residência obrigatória dos bispos em suas dioceses, buscando restaurar a disciplina eclesiástica e a credibilidade moral da hierarquia.

Reforma litúrgica e doutrinária: a fé em ordem

Na esteira tridentina, Pio V deu continuidade a uma das tarefas mais urgentes da reforma católica: a padronização dos textos litúrgicos. Em 1568, publicou uma versão reformada do Breviário Romano, seguida, em 1570, pela edição oficial do Missal Romano, que estabeleceu o chamado rito tridentino, utilizado pela Igreja Latina até o Concílio Vaticano II. Também publicou o Catecismo Romano, que visava oferecer clareza doutrinária diante da proliferação das heresias.

Essas obras não foram apenas atos administrativos, mas manifestações concretas de uma visão eclesiológica: para Pio V, a liturgia e a doutrina não podiam ser separadas da verdade evangélica, e esta, por sua vez, deveria ser comunicada com clareza, dignidade e reverência.

Lepanto: entre o rosário e a resistência

O episódio mais lembrado do pontificado de Pio V, porém, é a Batalha de Lepanto, travada em 7 de outubro de 1571. Diante da ameaça de invasão otomana à Europa, o Papa organizou a Liga Santa, aliança entre os reinos cristãos, incluindo Espanha, Veneza e os Estados Pontifícios. Enquanto os navios partiam ao encontro da frota turca, Pio V conclamava os fiéis a rezarem o rosário, confiando a proteção da cristandade à intercessão da Virgem Maria.

A vitória em Lepanto foi celebrada como um milagre. Conta-se que, no momento exato da batalha, o Papa, rezando em seu oratório, teve uma visão da vitória antes mesmo de receber a notícia oficial. Em sinal de gratidão, instituiu a festa de Nossa Senhora da Vitória, mais tarde renomeada para Nossa Senhora do Rosário, celebrada até hoje no dia 7 de outubro.

Relação com os poderes temporais

Pio V também soube mover-se com firmeza frente às monarquias europeias. Conseguiu, com habilidade e diplomacia, que os decretos tridentinos fossem implementados na Itália, Alemanha, Polônia e Portugal. No entanto, não hesitou em entrar em conflito com a coroa francesa e, especialmente, com a rainha Isabel I da Inglaterra, a quem excomungou em 1570 por sua adesão ao anglicanismo e perseguição aos católicos. A bula Regnans in Excelsis simboliza o alcance teológico e político do papado de Pio V, ainda fortemente ligado à ideia de Cristandade unificada.

Pastor dos pobres

Apesar de seu rigor doutrinário, Pio V não se esqueceu da dimensão social do evangelho. Em tempos de fome e miséria, aboliu gastos luxuosos da corte e dedicou recursos aos mais necessitados. Criou instituições como o Monte de Piedade — destinado a empréstimos sem usura — e fortaleceu hospitais como o de Santo Espírito e o de São Pedro. Durante a carestia de 1566, distribuiu alimentos e cuidou da salubridade urbana, antecipando práticas que hoje chamaríamos de “política pública de bem-estar”.

Morte e canonização

Debilitado por enfermidades, Pio V faleceu no dia 1º de maio de 1572, após um pontificado de apenas seis anos, mas profundamente marcante. Seus restos mortais repousam na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma. Foi beatificado em 1672 pelo Papa Clemente X e canonizado em 1712 por Clemente XI, sendo lembrado não apenas como reformador e guerreiro da fé, mas como santo padroeiro da fidelidade doutrinária e da devoção mariana.

Legado espiritual e atualidade

O legado de São Pio V ultrapassa as fronteiras da história. Em tempos de fragmentação doutrinal e crises de autoridade, sua figura continua sendo invocada como modelo de integridade, austeridade e coragem evangélica. Sua confiança no poder da oração — especialmente do rosário — é uma herança espiritual que permanece viva. Sua oração constante e sua vigilância sobre a pureza da fé desafiam os cristãos de todas as épocas a viverem com coerência e fidelidade.

“Ao nosso Papa pedimos a fortaleza contra as heresias, a força contra o demônio e a tentação com uma santa devoção à Virgem Maria, a Senhora e Rainha das Batalhas. Com ele, pedimos por nossos governantes que sejam fiéis a Deus e comprometidos com o povo, comprometidos com a verdade. Amém.”

 

São Pio V, rogai por nós!

Referências bibliográficas

  • Chadwick, Owen. A Reforma. São Paulo: Paulus, 1994.
  • Jedin, Hubert. História da Igreja, Volume V: A Reforma Católica. Petrópolis: Vozes, 1973.
  • Pastor, Ludwig. History of the Popes: From the Close of the Middle Ages. London: Kegan Paul, 1891.
  • Faggioli, Massimo. True Reform: Liturgy and Ecclesiology in Sacrosanctum Concilium. Collegeville: Liturgical Press, 2012.

Housley, Norman. The Later Crusades: From Lyons to Alcazar, 1274–1580. Oxford: Oxford University Press, 1992.

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