Matias, o “dom de Deus”, foi o apóstolo que assumiu o lugar deixado por Judas Iscariotes. Sua eleição pós-ascensão revela muito sobre a Igreja nascente.
A figura de São Matias, ainda que envolta em relativa obscuridade nos relatos bíblicos, é de imenso valor teológico, eclesial e simbólico. Seu nome — de origem hebraica, Mattityahu, que significa “dom de Deus” — já nos introduz na compreensão do papel que ele viria a desempenhar: um presente divino à comunidade dos Doze, os pilares fundacionais da Igreja. A história de Matias nos é contada de forma sucinta, mas profundamente significativa, no livro dos Atos dos Apóstolos (At 1,15-26), texto que se torna o ponto de partida para compreendermos não apenas sua vida, mas a própria identidade apostólica como continuidade da missão de Jesus Cristo.
Uma eleição eclesial: discernimento, oração e missão
Após a Ascensão de Jesus, a jovem comunidade cristã, sob a liderança de Pedro, se vê diante de um vazio: o colégio apostólico está incompleto. É nesse contexto que surge a necessidade de escolher um novo apóstolo, alguém que tenha acompanhado Jesus “desde o batismo de João até o dia em que foi arrebatado” (At 1,22). Como destaca Pedro, o novo eleito deveria ser não apenas um seguidor, mas uma testemunha ocular da ressurreição — elemento central da fé cristã primitiva.
Duas figuras foram então propostas: José, chamado Barsabás (cognominado Justo), e Matias. A escolha se deu por meio de um sorteio, precedido de intensa oração: “Senhor, tu que conheces os corações, mostra qual destes dois escolheste”. O método pode causar estranhamento moderno, mas é perfeitamente coerente com a tradição judaica da época, que via no sorteio um meio legítimo de revelar a vontade divina (cf. Lv 16,8; Js 18,6-10; Pr 16,33).
Esse episódio é teologicamente revelador: a Igreja nasce sinodal, em oração, em discernimento comunitário e em fidelidade às Escrituras. A eleição de Matias, assim, não é um ato administrativo, mas um gesto profundamente espiritual e eclesial.
A testemunha do Ressuscitado
Ser apóstolo não era apenas ser um discípulo próximo de Jesus. Era — e continua sendo, de certa forma, para a missão da Igreja — uma vocação à testemunha integral da Páscoa, a ressurreição de Cristo. Nesse sentido, Matias torna-se paradigma daquele que, sem ter sido nomeado diretamente por Jesus durante a vida pública, é ainda assim chamado e enviado em seu nome.
Como lembra o teólogo e bispo N.T. Wright, “a ressurreição não é uma metáfora ou símbolo espiritual: é um fato que transforma a história” (Wright, Surprised by Hope, 2008). Ser testemunha da ressurreição significa, portanto, ser anunciador de uma nova realidade, onde a morte foi vencida e o Reino de Deus se inaugurou de forma irrevogável.
Matias e a continuidade apostólica
A escolha de Matias também antecipa aquilo que, na linguagem posterior da Igreja, se chamaria sucessão apostólica. A autoridade apostólica não se encerra com a morte dos Doze, mas continua sendo confiada a novos líderes — bispos, presbíteros, missionários — sempre em fidelidade à pregação dos primeiros. O episódio de sua eleição mostra que a missão não está presa a figuras individuais, mas é patrimônio vivo da comunidade guiada pelo Espírito.
De certo modo, Matias é o primeiro apóstolo “pós-Jesus”, ou seja, o primeiro a ser eleito quando Jesus já havia subido aos céus. Isso reforça a ideia de que a missão de Cristo continua por meio da Igreja e de seus enviados, mesmo na ausência física do Senhor.
A tradição pós-bíblica e o martírio
Pouco sabemos sobre a vida de Matias após sua eleição. Nenhum outro trecho do Novo Testamento volta a mencioná-lo. No entanto, tradições muito antigas afirmam que ele teria evangelizado regiões como a Judeia, a Capadócia e até mesmo a Etiópia ou a Colchis (atual Geórgia). Nessas narrativas, Matias teria enfrentado perseguições e sofrido o martírio, sendo apedrejado e depois decapitado.
A tradição iconográfica o apresenta frequentemente com um machado ou uma alabarda, instrumentos ligados à sua morte, e que também simbolizam a força da fé cristã diante da violência e da injustiça. Por causa desses elementos, Matias é considerado padroeiro dos carpinteiros, açougueiros e trabalhadores que manejam ferramentas de corte.
Relíquias e culto
Segundo registros do século IV, a imperatriz Santa Helena, mãe de Constantino, teria mandado trasladar as relíquias de São Matias para Roma. Parte delas foi colocada na basílica de Santa Maria Maior, enquanto outra parte foi levada para Trier (Treves), na atual Alemanha, onde permanece até hoje. A cidade, que reivindica ter sido evangelizada por ele, considera Matias seu padroeiro.
A veneração a São Matias foi consolidada ao longo dos séculos, com registros litúrgicos já no século VIII. Tradicionalmente celebrada em 24 de fevereiro, sua festa foi transferida, após a reforma do calendário litúrgico, para o dia 14 de maio — uma data mais próxima daquela em que, conforme os Atos dos Apóstolos, teria ocorrido sua eleição.
A atualidade do testemunho de Matias
Em tempos marcados por rupturas institucionais, crises de autoridade e um crescente individualismo religioso, o testemunho de Matias nos lembra que a vocação cristã não é resultado de marketing pessoal, mas de um chamado divino vivido em comunhão eclesial. Como observa o historiador jesuíta John W. O’Malley, “o apóstolo não é apenas um emissário, mas um elo vivo com a memória do Senhor” (O’Malley, What Happened at Vatican II, 2008).
Matias nos convida, portanto, a uma vivência cristã que alia fidelidade à tradição, inserção comunitária e coragem missionária. Mesmo sem ter recebido diretamente uma missão pública de Jesus, tornou-se um dos Doze porque foi testemunha do Ressuscitado — algo que todos os cristãos, em certa medida, são chamados a ser.