A história da Igreja é feita de grandes figuras que, com discrição e perseverança, mantêm vivo o carisma de seus fundadores. Uma dessas figuras é o Beato Miguel Rua, discípulo e primeiro sucessor de São João Bosco, cuja memória é celebrada com especial carinho no seio da Família Salesiana, inclusive pela Comunidade Canção Nova, que participa espiritualmente desse rico legado.
Embora seu nome não seja tão popular quanto o de Dom Bosco, Miguel Rua representa aquilo que o Concílio Vaticano II resgatou como “sensus fidei” — a fé vivida na simplicidade, com fidelidade ao Evangelho e ao carisma recebido. Por isso, recordar sua vida é, ao mesmo tempo, um exercício de memória histórica e um convite à santidade cotidiana.
Uma data, duas celebrações
A Igreja universal recorda os seus santos e beatos no dia de sua “Páscoa”, isto é, no dia de sua morte, entendida como nascimento para a vida eterna. Miguel Rua faleceu em 6 de abril de 1910, e, portanto, essa é a data em que, no calendário litúrgico, sua memória pode ser celebrada. No entanto, a Família Salesiana, como expressão de seu carinho e veneração, recorda-o oficialmente em 29 de outubro, data que marca a sua beatificação pelo Papa Paulo VI, em 1972.
A infância marcada pela perda e pela providência
Miguel Rua nasceu em Turim, em 1837, no seio de uma família humilde. Órfão de pai ainda na infância, sua trajetória se cruzou com a de João Bosco de forma quase providencial. A educação naquele tempo era limitada, e o terceiro ano escolar representava o fim do percurso obrigatório para a maioria das crianças. Já estava praticamente decidido que Miguel trabalharia numa fábrica, quando Dom Bosco, ao perceber seu potencial e sensibilidade espiritual, interveio diretamente junto à mãe do jovem, convencendo-a a permitir que o filho continuasse os estudos.
Essa decisão mudaria não apenas a vida de Miguel, mas também a história do carisma salesiano.
Valdocco: o berço da vocação
No Oratório de Valdocco, que já acolhia cerca de 500 jovens, Miguel encontrou não apenas educação, mas também uma missão. Aos 15 anos, em 1852, ele recebeu o hábito clerical nos Becchi de Castelnuovo e, apenas dois anos depois, participou da fundação da Congregação Salesiana, quando Dom Bosco reuniu quatro jovens em seu quarto para formalizar o início da obra que mudaria a face da evangelização juvenil no século XIX.
Em 1855, Miguel Rua professava os votos de pobreza, castidade e obediência nas mãos do próprio Dom Bosco, tornando-se o primeiro salesiano professado da história.
Trabalho, estudo e zelo apostólico
Ainda muito jovem, Miguel assumiu múltiplas responsabilidades dentro da comunidade: ensinava matemática e religião, auxiliava na organização das refeições, cuidava do pátio e da capela, e à noite dedicava-se a copiar manuscritos e cartas de Dom Bosco. Mesmo com uma rotina exaustiva, não abandonava os estudos para o sacerdócio.
Foi também nomeado responsável pelo Oratório San Luigi, uma importante obra juvenil que prepararia Miguel para os grandes desafios administrativos e pastorais que viriam mais tarde.
Uma vida profundamente ligada à de Dom Bosco
A relação entre Dom Bosco e Miguel Rua ultrapassava os limites institucionais. Com a morte de Mamma Margarida, mãe de Dom Bosco e figura materna no oratório, a mãe de Miguel, Gioanna Maria Ferrero, assumiu com generosidade essa função, consolidando os laços entre as famílias Rua e Bosco.
Em 1858, Miguel acompanhou Dom Bosco em sua viagem a Roma, para apresentar ao Papa Pio IX as regras da nova congregação. Sua presença nessa missão demonstrava a confiança que Dom Bosco depositava em seu jovem discípulo.
Uma profecia que se cumpre
Ordenado sacerdote em 28 de julho de 1860, Miguel recebeu de Dom Bosco uma mensagem simbólica, quase profética:
“Tu verás melhor que eu a obra salesiana atravessar as fronteiras da Itália e estabelecer-se no mundo.”
E assim foi. Em Mirabello, Miguel fundou a primeira casa salesiana fora de Turim, e, anos depois, regressou a Valdocco para assumir a administração direta da obra, substituindo Dom Bosco em diversas funções.
Sucessor de um santo
Quando Dom Bosco faleceu em 1888, nos braços de Miguel Rua, o então Papa Leão XIII já o havia nomeado vigário e sucessor do fundador. A missão não seria fácil: liderar uma congregação carismática em expansão, sem comprometer o espírito original.
No entanto, Miguel cumpriu esse desafio com notável equilíbrio entre fidelidade e inovação. Sob sua liderança, os salesianos passaram de 773 membros a mais de 4 mil, e o número de casas religiosas cresceu de 57 para 345, com presença em 33 países.
O “Dom Bosco número dois”
A figura de Miguel Rua é frequentemente descrita como a de um “Dom Bosco número dois”. Contudo, sua contribuição própria foi marcante. Enquanto Dom Bosco era o visionário carismático, Miguel foi o organizador fiel, aquele que traduziu em estruturas e normas a inspiração do fundador.
Seu governo foi pautado pela simplicidade evangélica, pelo espírito de sacrifício e por uma notável capacidade de escuta e discernimento. Chamado por muitos de “a Regra viva”, Miguel não apenas conhecia os estatutos da congregação — ele os encarnava.
A Páscoa de um homem fiel
No dia 6 de abril de 1910, aos 73 anos, Miguel Rua faleceu. Sua morte foi profundamente sentida por toda a Família Salesiana. Anos depois, ao beatificá-lo, o Papa Paulo VI diria:
“Fez da fonte um rio.”
Essa imagem resume perfeitamente o papel de Miguel Rua: um homem que, recebendo a graça de Deus e o carisma salesiano, expandiu-os sem jamais desfigurá-los.
Atualidade do Beato Miguel Rua
Em tempos de profundas mudanças culturais e eclesiais, a figura de Miguel Rua continua a inspirar religiosos, educadores, pais e jovens. Sua fidelidade ao Evangelho, vivida no cotidiano e em espírito de serviço, responde às palavras do Papa Francisco sobre os santos da porta ao lado, que constroem a santidade no silêncio, na entrega e na alegria.
Oração inspirada na vida de Miguel Rua
“Jesus, quando tudo parece estar perdido, há no seio da tua Igreja homens e mulheres que te seguem com fidelidade e coragem. Que eu e minha família sejamos os sucessores daqueles que, como Dom Bosco e o Beato Miguel Rua, fizeram a tua vontade. Guia-nos, Senhor Jesus.”
Beato Miguel Rua, rogai por nós!
Referências bibliográficas
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BRAIDO, Pietro. Dom Bosco e a sua obra. Roma: LAS, 1982.
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STELLA, Pietro. Don Bosco nella storia della religiosità cattolica. Roma: LAS, 1979.
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SALESIANI DON BOSCO. Beato Michele Rua: Primo Successore di Don Bosco. Roma: SDB, 2010.
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FAGGIOLI, Massimo. Catholicism and Citizenship: Political Cultures of the Church in the Twenty-First Century. Collegeville: Liturgical Press, 2017.