Santo do Dia

Santa Margarida de Città di Castello: Luz na escuridão

Quando o mundo não vê, Deus enxerga

Num tempo em que o valor de uma vida era medido por critérios de perfeição física, nascimento nobre e utilidade social, a história de Santa Margarida de Città di Castello revela uma subversão cristã da lógica humana. Marginalizada, invisibilizada, rejeitada por aqueles que mais deveriam acolhê-la, ela encontrou na um caminho não apenas de sobrevivência, mas de plena realização da vocação cristã. Ao refletirmos sobre sua vida, somos convidados a ver além das aparências e a acolher a vontade de Deus como caminho de plenitude.

Infância marcada pela dor e ocultamento

Margarida nasceu por volta de 1287, em Urbino, Itália, no seio de uma família nobre. Contudo, sua condição de cega e com uma malformação física foi vista por seus pais como motivo de vergonha e escândalo. Em vez de acolhê-la com amor, a esconderam do mundo — literalmente.

Durante seus primeiros anos de vida, Margarida permaneceu reclusa em uma cela anexa à casa, sem contato com o mundo exterior, sob os cuidados de uma serva que lhe ensinou os rudimentos da fé cristã. Esse confinamento físico, paradoxalmente, abriu espaço para um florescimento espiritual precoce. Desde pequena, Margarida já demonstrava inclinação à oração e profunda sensibilidade para com as coisas de Deus.

A busca por um milagre e o abandono

No ano de 1292, seus pais ouviram falar do frade franciscano Tiago de Città di Castello, falecido com fama de santidade. Movidos pela esperança de um milagre que “corrigisse” a filha, levaram Margarida à sua tumba. No entanto, quando a cura física não se concretizou, abandonaram-na ali mesmo, à margem do túmulo, como se a falta de milagre fosse uma espécie de sentença divina de rejeição.

O gesto cruel transformou-se, paradoxalmente, em bênção. Deus começava a conduzir Margarida a um caminho de santidade não pelo triunfo visível, mas pela fidelidade na adversidade.

A Providência no abandono: das ruas ao coração de Deus

Sozinha e cega, a menina passou a mendigar pelas ruas de Città di Castello, sustentada por esmolas e pela compaixão popular. Mas a mão providente de Deus não a abandonou. Foi acolhida, primeiramente, por uma comunidade de religiosas. No entanto, seu estilo de vida austero — marcado por jejuns rigorosos, vigílias, e práticas de mortificação — gerou desconforto entre as monjas, que decidiram afastá-la.

Mais uma vez, o padrão de rejeição se repetia. Mas, em cada afastamento humano, Margarida se aproximava ainda mais do coração de Deus.

O verdadeiro lar: amor humano e espiritualidade encarnada

Finalmente, um casal de cristãos piedosos, Venturino e Grigia, acolheu Margarida em sua casa, mesmo já tendo filhos. Deram-lhe um pequeno quarto, onde ela pôde desenvolver sua vida de oração, penitência e contemplação. A presença de Margarida transformou aquele lar: ajudava na formação cristã das crianças, socorria pobres, doentes e prisioneiros, e visitava os esquecidos pela sociedade.

Sua espiritualidade não era de fuga do mundo, mas de inserção compassiva. Participava ativamente da vida religiosa da cidade e integrou a Ordem da Penitência de São Domingos, o ramo leigo da espiritualidade dominicana, caracterizado pelo amor à verdade, à pregação e à caridade.

Santidade na escuridão: a teologia do sofrimento redentor

O que torna Margarida uma figura teológica tão profunda é sua capacidade de transformar o sofrimento em via de união com Cristo. Em vez de revoltar-se com a própria condição, uniu-se à Paixão de Jesus, vendo em sua dor um eco do sofrimento do Redentor. A sua cegueira foi, paradoxalmente, o que lhe permitiu “ver” mais claramente a vontade de Deus.

Como o teólogo Hans Urs von Balthasar afirmou, “a cruz é a revelação do amor que se doa completamente” — e Margarida viveu isso de modo radical. Sua vida foi uma contínua resposta de amor ao amor de Cristo.

A Páscoa de Margarida

Margarida morreu em 13 de abril de 1320, com 33 anos, a mesma idade com que Cristo foi crucificado. Sua morte foi serena, marcada pela paz de quem já vivia em comunhão com o Senhor. O povo de Città di Castello reconheceu rapidamente sua santidade. Seu túmulo tornou-se local de peregrinação, e relatos de curas e milagres começaram a ser associados à sua intercessão.

Embora seu processo de canonização não tenha seguido os trâmites tradicionais por séculos, o povo nunca deixou de venerá-la como santa.

Canonização equipolente por Papa Francisco

Foi somente em 24 de abril de 2021 que o Papa Francisco, reconhecendo a antiguidade e a constância do culto a Margarida, decretou sua canonização equipolente — um procedimento reservado a casos especiais, em que o pontífice reconhece, sem necessidade de novos milagres ou processos, que um fiel foi, de fato, venerado como santo por séculos. Esta canonização reforça a centralidade do sofrimento unido a Cristo como caminho legítimo de santidade.

Um convite à confiança na vontade de Deus

A vida de Santa Margarida nos interroga profundamente: como reagimos quando Deus não realiza o milagre que esperamos? Sua história não é de frustração, mas de descoberta de um amor maior. Ao não ser curada, Margarida foi curada de forma mais profunda: na alma. Ela se conformou à vontade divina e, assim, encontrou sentido, propósito e salvação.

Muitos de nós pedimos coisas a Deus, e quando não as recebemos, supomos que Ele não nos ouviu. Margarida mostra que o silêncio de Deus, às vezes, é o modo mais profundo de falar. O que ela nos ensina, com a força de uma vida crucificada mas luminosa, é que “Deus escreve certo por linhas tortas” — e que seu amor, ainda que misterioso, nunca falha.

Oração inspirada em sua vida

“Senhor, ensina-me, como Santa Margarida, a buscar tua vontade acima dos meus desejos. Toca minhas feridas com teu amor e concede-me ver com os olhos da alma. Que eu me abandone, confiante, à tua Providência.”

Um testemunho para nosso tempo

Santa Margarida de Città di Castello é um espelho onde podemos ver refletida a beleza da fé vivida na radicalidade do amor. Em tempos em que a aparência, a produtividade e o sucesso ditam o valor das pessoas, sua vida nos lembra que Deus vê o que o mundo não enxerga.

Ela nos mostra que a santidade não é um privilégio dos fortes ou saudáveis, mas dom de Deus a quem se abre ao mistério de sua vontade — mesmo quando esta parece dura demais aos nossos olhos humanos.

Referências bibliográficas

  • Vauchez, André. The Laity in the Middle Ages: Religious Beliefs and Devotional Practices. University of Notre Dame Press, 1993.
  • Woodward, Kenneth L. Making Saints: How the Catholic Church Determines Who Becomes a Saint, Who Doesn’t, and Why. Simon & Schuster, 1996.
  • Balthasar, Hans Urs von. A Teologia da Cruz. Paulus, 2003.
  • Vatican News. “Santa Margherita di Città di Castello è santa.” Publicado em 24 de abril de 2021.
  • Catecismo da Igreja Católica, §828, sobre a canonização e culto dos santos.

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