A história de Santa Catarina de Sena: mística, política, teóloga e padroeira da Europa, com papel central na crise da Igreja medieval.
Santa Catarina de Sena (ou Santa Catarina de Siena) é uma das figuras mais fascinantes da história da Igreja Católica. Mulher de oração intensa, inteligência aguçada e força incomum, viveu num dos períodos mais conturbados da cristandade — e nele brilhou com força singular. Nascida em Siena, na Itália, em 25 de março de 1347, Catarina Benincasa foi a 24ª filha de Giacomo de Benincasa, um tintureiro humilde, e Lapa Piacenti. Desde muito cedo, demonstrou um desejo profundo de consagrar-se inteiramente a Deus, algo que moldaria não apenas sua vida pessoal, mas também a trajetória espiritual e política da Igreja em sua época.
Uma infância tocada pela graça
Segundo seus biógrafos — como Raimundo de Cápua, seu confessor e discípulo — Catarina era uma criança profundamente sensível à realidade espiritual. Aos sete anos, em um ato de notável precocidade, consagrou sua virgindade a Deus, gesto feito na presença espiritual da Virgem Maria, conforme relatado posteriormente. Sua infância foi marcada por visões místicas, estados de êxtase e uma vida de oração intensa, mesmo enquanto ainda era leiga.
Apesar de ser analfabeta na juventude, pois sua condição social não lhe dava acesso à educação formal, Catarina insistiu em aprender a ler e escrever já na idade adulta. Ainda assim, suas dificuldades com a escrita não impediram que suas palavras alcançassem os mais altos escalões do poder religioso e político da época.
Vocação dominicana e ascetismo
Aos 15 anos, Catarina teve uma visão de São Domingos, fundador da Ordem dos Pregadores. Este episódio foi decisivo para que ingressasse na Ordem Terceira Dominicana — uma congregação leiga, mas profundamente ligada ao carisma dominicano. A partir de então, sua vida de oração tornou-se ainda mais intensa. Praticava severos jejuns, penitências corporais e vivia em constante meditação sobre a paixão de Cristo.
Ela compreendia o sofrimento como uma via de união com Deus, mas não de forma masoquista: para Catarina, o sofrimento era um modo de configurar-se a Cristo, de ser Igreja com Ele e n’Ele. Sua espiritualidade não era isolacionista. Pelo contrário, estava profundamente enraizada na realidade e nos problemas de sua época.
Mística e política: uma mulher na história da Igreja
Um dos aspectos mais extraordinários de sua vida foi sua atuação política. Embora mulher e leiga — e, por isso, excluída das esferas tradicionais de poder eclesiástico — Catarina escreveu cerca de 380 cartas, muitas das quais destinadas a papas, reis, bispos e líderes civis. Usava a palavra escrita como instrumento de reforma e conversão, sempre impulsionada por um profundo amor à Igreja, a qual chamava de “Doce Esposa de Cristo”.
Na época, a cristandade vivia o Cisma do Ocidente (1378–1417), um momento crítico em que mais de um homem reivindicava o trono papal. Catarina desempenhou papel crucial ao convencer o Papa Gregório XI a deixar Avignon, onde a cúria papal estava exilada desde 1309, e retornar a Roma, sede legítima da Igreja. Após a morte de Gregório XI, ela apoiou a eleição do Papa Urbano VI, defendendo com vigor a unidade da Igreja e combatendo os antipapas.
Sua influência sobre o papado não era de força bruta ou imposição, mas sim de autoridade moral, sabedoria espiritual e profunda convicção.
Obra teológica: “O Diálogo”
A contribuição de Santa Catarina à teologia mística é notável. Sua principal obra, O Diálogo da Divina Providência, foi escrita em forma de colóquio entre a alma e Deus Pai. Nela, trata de temas como a santidade, a missão da Igreja, a natureza do pecado e a importância da obediência à vontade divina. A profundidade teológica do texto é reconhecida até hoje como uma das maiores expressões do pensamento cristão medieval, comparável aos escritos de Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz.
O que impressiona é que esse conteúdo foi ditado por ela a escribas, já que escrevia com dificuldade. Trata-se de uma teologia nascida da experiência direta com Deus — de visões, êxtases e uma vivência de fé visceral.
Em meio à peste, o rosto da caridade
Durante a epidemia de peste negra, que devastou a Europa no século XIV, Catarina não se retirou em segurança. Ao contrário, abandonou seu recolhimento e foi ao encontro dos doentes e moribundos. Com coragem, cuidava dos corpos e das almas, confortando e curando com gestos de compaixão. Acreditava que Cristo estava presente nos mais pobres e necessitados, e que servir aos outros era uma forma de servir a Deus.
Seu exemplo de amor ao próximo converteu muitos e atraiu discípulos, inclusive homens instruídos e membros da alta sociedade.
Estigmas e morte
Nos últimos anos de vida, Catarina recebeu os estigmas de Cristo — as marcas da Paixão —, embora de forma invisível aos olhos humanos. Sofreu intensamente, tanto física quanto espiritualmente, especialmente por sua identificação mística com os sofrimentos da Igreja. Morreu em Roma, no dia 29 de abril de 1380, com apenas 33 anos de idade, idade considerada simbólica por corresponder à idade da morte de Cristo.
Antes de morrer, pronunciou palavras comoventes:
“Partindo do corpo, eu, na verdade, consumi e entreguei a minha vida na Igreja e pela Igreja, que é para mim uma graça extremamente singular.”
Culto e devoção
Santa Catarina de Sena foi canonizada em 1461 pelo Papa Pio II. Em 1970, foi proclamada Doutora da Igreja pelo Papa Paulo VI, sendo uma das primeiras mulheres a receber esse título, ao lado de Santa Teresa de Ávila. Em 1999, o Papa João Paulo II a proclamou co-padroeira da Europa, ao lado de Santa Brígida da Suécia e Edith Stein.
A sua oração oficial ainda é rezada por fiéis que buscam auxílio espiritual, cura e discernimento. Na tradição popular, também é invocada por escritores, enfermeiros e diplomatas — símbolos das múltiplas dimensões de sua missão.
Oração contemporânea
A devoção a Santa Catarina permanece viva até os dias de hoje. Muitos fiéis rezam a seguinte súplica:
“Santa Catarina de Sena, vós que fostes instrumento de Deus para a Igreja e o povo, sendo admirada e um exemplo de vida dedicada a Deus, dai-nos a graça de nos mantermos perseverantes na fé transmitida pela Igreja e a buscar uma maior intimidade diária com nosso Amado, a fim de que, um dia, possamos contemplar a face Divina. Amém.”
Referências bibliográficas
- CÁPUA, Raimundo de. A Vida de Santa Catarina de Siena. Paulus, 2004.
- FAGGIOLI, Massimo. True Reform: Liturgy and Ecclesiology in Sacrosanctum Concilium. Liturgical Press, 2012.
- BOAGA, Giovanni. Santa Caterina da Siena: Vita, scritti, spiritualità. Edizioni Messaggero Padova, 2010.
- BALTHASAR, Hans Urs von. Teologia e santità. Città Nuova, 1982.
Igreja Católica. O Diálogo da Divina Providência, tradução brasileira. Loyola, 2006.