A história de Santa Antonina é, ao mesmo tempo, um testemunho comovente da fé cristã primitiva e uma janela para compreender como os calendários litúrgicos se formaram e consolidaram nos primeiros séculos da Igreja. Com raízes etimológicas no nome latino Antonius, possivelmente derivado do grego Antionos, que significa “nascido antes”, o nome Antonina tornou-se comum entre os povos latinos e, mais tarde, encontrou eco no cristianismo nascente, especialmente por meio do culto aos mártires.
A vida e o martírio de Antonina
Antonina é lembrada como uma jovem cristã que viveu durante o período das grandes perseguições do Império Romano. Seu martírio ocorreu em Nicéia, cidade localizada na antiga região da Bitínia, hoje parte da atual Turquia. A data de sua morte foi registrada como 4 de maio do ano 306, durante a feroz repressão anticristã do imperador Diocleciano, responsável por uma das mais brutais perseguições aos seguidores de Cristo no final do século III e início do século IV.
Segundo as tradições hagiográficas, Antonina foi denunciada por sua fé cristã e submetida a torturas atrozes. Suas mãos e pés foram queimados com ferros em brasa. Depois, ela foi deixada por dois dias numa cela estreita com o chão coberto por brasas ardentes — uma imagem que remete à intensidade simbólica do martírio como identificação com os sofrimentos de Cristo. Mesmo após esse suplício, ela se recusou a renegar a fé. Como punição final, foi costurada dentro de um saco e lançada em um lago pantanoso nos arredores de Nicéia.
Martirológio e confusão litúrgica
A memória litúrgica de Santa Antonina revela também as complexidades da organização do culto aos santos nos primeiros séculos da Igreja. Ela é mencionada três vezes no Martirológio Romano — nos dias 1º de março, 4 de maio e 12 de junho — como se fossem três figuras distintas. Essa tripla menção gerou confusão entre os fiéis e mesmo entre estudiosos e responsáveis pela organização litúrgica.
Durante o pontificado de Clemente VIII, no século XVI, o cardeal Cesare Baronio foi encarregado de revisar e unificar o calendário litúrgico da Igreja. Baronio, que também era bibliotecário do Vaticano, organizou o Martyrologium Romanum como um compêndio de todos os santos conhecidos da história cristã até então. Seu trabalho foi crucial para sistematizar e padronizar as datas comemorativas, mas mesmo ele cometeu equívocos inevitáveis, dada a complexidade das fontes.
No caso de Antonina, a divergência entre os calendários egípcio, grego e siríaco contribuiu para a percepção de que havia três mártires diferentes. O calendário grego afirmava que Antonina fora decapitada; o egípcio, queimada viva; e o siríaco, afogada. As contradições surgiam em parte porque o nome “Antonina” era comum, e a tradição oral frequentemente alterava os detalhes dos martírios ao longo do tempo.
A contribuição dos códices antigos
A confusão só começou a ser resolvida no século V, com a descoberta de um códice geronimiano — atribuído à tradição textual de São Jerônimo — que indicava de forma mais clara a existência de uma única mártir com esse nome em Nicéia. Esse manuscrito tornou-se uma das bases para a correção das duplicidades e triplicidades no Martirológio. Ele mostra como a historiografia cristã e a tradição litúrgica se construíram, muitas vezes, sobre fragmentos dispersos, cuja harmonização exigia profundo discernimento.
Um reflexo da Igreja em expansão
É importante notar que a Igreja dos primeiros séculos era profundamente missionária. À medida que o cristianismo se expandia pelo mundo romano — e além —, os relatos sobre santos e mártires eram adaptados à cultura e à língua dos povos recém-convertidos. Essa flexibilidade era vista como necessária para a consolidação da fé. No entanto, ela também criou um mosaico de tradições locais que, mais tarde, exigiria um trabalho de uniformização.
Como lembra o historiador francês Hippolyte Delehaye, membro da prestigiosa Bollandistes, grupo dedicado à crítica hagiográfica, a hagiografia antiga não visava necessariamente a precisão histórica, mas a edificação espiritual. Assim, os relatos de martírio como o de Antonina estavam mais preocupados em apresentar modelos de fé do que em relatar eventos com rigor documental.
A devoção a Santa Antonina
Apesar da escassez de dados concretos sobre sua vida, a figura de Antonina ganhou destaque entre os cristãos como símbolo de fidelidade até o fim. Sua história foi passada adiante de geração em geração, inspirando mulheres e homens perseguidos por sua fé ao longo da história. Ainda hoje, em algumas tradições orientais e em comunidades católicas locais, Santa Antonina é celebrada como exemplo de coragem e resistência.
O dia 4 de maio foi mantido como sua principal data comemorativa, conforme consolidado pela tradição ocidental. Essa escolha reflete não apenas uma tentativa de padronização litúrgica, mas também o esforço da Igreja em manter viva a memória dos mártires que deram a vida por sua fé — mesmo quando os detalhes concretos de suas existências se perdem no tempo.
A história de Santa Antonina de Nicéia é uma amostra das tensões entre história e memória, entre devoção popular e esforço institucional. Seu martírio, embora registrado com variantes, aponta para um núcleo comum de testemunho cristão sob perseguição. A maneira como foi celebrada em diferentes calendários mostra a pluralidade da Igreja antiga e o desafio de harmonizar essas vozes diversas em um só corpo litúrgico.
Em tempos em que a memória cristã é frequentemente esquecida ou marginalizada, figuras como Antonina lembram-nos de que a fé tem um preço — e que a fidelidade a Cristo muitas vezes se manifesta de maneira silenciosa, dolorosa, mas extraordinariamente corajosa.